Ícone do teatro nacional, Amir Haddad logo interrompe a conversa quando perguntado sobre a morte do amigo José Celso Martinez Corrêa. "A morte do Zé Celso não existe. Só sei falar sobre a vida dele. Uma vida produtiva, transformadora, inquietadora. Ele trouxe uma contribuição inestimável para a vida pública brasileira", pontua, com firmeza, em entrevista ao Super Fruits Slot.
Zé partiu aos 86 anos após sofrer queimaduras durante incêndio em sua casa, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Revolucionário, o artista é ponto de virada na história do teatro. Ele fundou, junto a Amir e outros estudantes universitários em 1958, o Teatro Oficina, um marco transgressor nas artes cênicas. "A minha vida inteira eu fiquei admirando o trabalho dele e invejando, porque Zé Celso era muito melhor que eu. Acho injusto que ele tenha morrido da maneira tão surpreendente como foi", lamenta Amir.
A simbologia do derradeiro incêndio ecoa o fogo que destruiu parte da sede do Oficina, em maio de 1966. Um curto-circuito deu origem ao incidente que causou prejuízos, mas resultou em mobilização posterior para recuperar o equipamento cultural. Reaberto em 1967, o espaço e o grupo viveram momento de ascensão com a estreia de "O Rei da Vela", peça que bateu de frente com a ditadura militar e ganhou os palcos internacionais. Até no fim, portanto, Zé deixa a metáfora do renascimento após as chamas.
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Por isso mesmo, o ator cearense Abmael Henrique, integrante do espetáculo mais recente do Oficina, também se recusa a falar de morte. "Estamos em vibrações nesse momento de passagem do Zé, que encantou-se e agora vive em cada um de nós e na energia do teatro brasileiro", aponta o jovem artista, natural de Orós. Abmael está na peça "Mutação de Apoteose", uma celebração provocativa de símbolos da história do País, a exemplo de Canudos e das favelas que margeiam grandes capitais.
Esse olhar histórico e provocativo marca a trajetória de Zé Celso desde a gênese. De família tradicional de Araraquara (SP), foi aluno de Direito e, com a atuação na militância política, despertou para a criação artística. No fim dos anos 1950, já investia numa pesquisa teatral pouco ortodoxa ao abraçar uma antropofagia modernista nos palcos. Tropicalista, o artista "engolia" as referências estrangeiras que dominavam o teatro brasileiro à época e ia na contramão do estilo europeu vigente.
"O Grupo Oficina rompeu com uma concepção judaico-cristã da cultura brasileira, carnavalizou a razão dialética de Bertold Brecht, subverteu a alienação da Bossa Nova e profanou o escotismo dos nacionalistas, enfrentando os patrulhamentos ideológicos de todos os matizes", afirma o teatrólogo Ricardo Guilherme. "Zé de excelso excesso, racional/sensorial, sempre antenado com a revolução das vanguardas", poetiza o cearense.
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Conforme Zé Celso ganhava notoriedade Brasil afora em 1960 e 1970, crescia a repressão ao trabalho do grupo. Nesse contexto, o paulista foi preso e torturado em 1974 e, após semanas na cadeia, se exilou em terras lusitanas - voltando ao País quatro anos depois.
Durante décadas de atuação, Zé e os provocadores do Oficina (hoje renomeado de Teatro Oficina Uzyna Uzona) realizaram montagens como "Roda Viva" (de Chico Buarque) e "Hamlet" (de Shakespeare), entre tantas obras. Criou, inspirou e também brigou. Inclusive, enfrentando Silvio Santos em disputa pelo terreno que abriga o Oficina. O dono do SBT queria construir torres comerciais. Zé insistiu na criação de um parque público para deixar correr o Rio Bixiga.
Aqui no Ceará, teve passagens marcantes. Numa delas, provocou a cidade de Quixeramobim com o espetáculo "Os Sertões", apresentação que durou 30 horas e se estendeu entre os dias 14 a 18 de novembro de 2007. "Zé conseguiu colocar na sua arte assuntos muito caros e mal resolvidos até hoje, dentro desse País tão marcado pela exclusão, pela violência, pela opressão e pela censura", afirma o historiador Neto Camorim, integrante da Iphanaq, ONG que esteve envolvida na produção da peça no Ceará.
Vivendo cada ato de sua vida com simbologia, Zé casou um mês antes da partida. Celebrou, ao som de Marina Lima, o amor antigo com Marcelo Drummond. Também vítima do fogo no apartamento, o companheiro que passou 37 anos com Zé está se recuperando. O cachorrinho dos dois, Nagô, está bem, já de alta.
"Nossa fênix acaba de partir pra morada do sol", homenageiam os artistas que compõem o Oficina. Herdeiros que, como defende Amir Haddad, se reconstruirão embebidos da presença do mestre. "Zé é imorredouro. Ele é transgressor pela própria natureza. Rompeu sempre e seguirá rompendo", projeta. (Colaboraram Miguel Araujo e Victor Marinho)
Zé e o profundo teatro
Dia desses, um amigo querido me apresentou detalhes da saga criativa de Joanna Januária de Sousa Bittencourt, uma atriz do século XIX. No chamado teatro velho, era comum artistas com assinaturas assim, bem longas. Nascido ultramoderno e vivido na encruzilhada com o contemporâneo, José Celso Martinez Corrêa, com tantos nomes e sobrenomes, desafiou tempos. Fazendo elogios a todos os teatros que o antecederam, Zé criou um teatro absolutamente particular e poderoso, porque transformador de si e do mundo.
Vi o Oficina pela primeira vez no terreiro sagrado da Rua Jaceguai, em São Paulo. É tanta coisa ali, que ofusca a vista. Como agora, eu me acabei de chorar. Naquele dia, lembro que eles cantavam um amor que era pouco e aumentou, quando eu só conhecia aquele outro, que a tradição diz que é pouco e acabou. Ao final, abracei Zé bem forte, disse do meu encantamento e ele me perguntou se eu tinha percebido a diferença da ciranda do primeiro para o último ato. Não, evidentemente, eu não tinha. A mim, era magia pura; a Zé, era matemática.
Retrato das metamorfoses do que de mais próximo se possa chamar de um "teatro brasileiro", Zé Celso casou rigor e espontaneidade em criações que se fizeram eternas. Onde o olhar apressado via sensualidade ou festa, ele via política e filosofia. A exuberância colorida de Zé Celso carrega uma profundidade generosa e envolvente. Zé não acreditava num teatro para ser visto, ele acreditava e fez um teatro para ser vivido.
Magela Lima, jornalista e pesquisador teatral
Quando dancei com o Zé
Entediado, Zé Celso não quer mais ficar preso num auditório e convoca os presentes para interromper a palestra. Eu, na primeira fila, fico na corda bamba entre querer seguir ouvindo ensinamentos daquele poeta ou concordar que já passara da hora de levantarmos das cadeiras desconfortáveis daquela sala com luz de hospital.
Da Universidade Federal em Niterói partimos rumo à Praia do Icaraí, no Rio, onde repetimos em roda “Tupi or not Tupi, that is the question”. Debochado, Zé jogava palavras de língua estrangeira apelando a duplos sentidos e reconstrução das sílabas formando novas expressões.
Diretor dentro e fora dos palcos, ele pede para que os presentes entrem numa dança, explicando sem explicar que chega uma hora que o corpo fala mais do que as teorias. A plateia de alunos de teatro fica tímida, a priori, mas logo começa a arriscar passos e a palestra termina em festa.
Essa cena vivida no Rio de Janeiro em 2016 seguiu reverberando. Dentro da genialidade de quem construiu novas bases para o teatro nacional, Zé quis lembrar a todos os presentes que, além da mente, temos um corpo para cuidar e celebrar. Nem sempre o psicologismo é a saída – seja para criar uma peça ou para escolher a melhor forma de viver o cotidiano. Ele sabia olhar o mundo com Carnaval, com gaiatices, com poesias, com teimosias. Zé me ensinou outras formas de bailar com a vida. E eu não esquecerei essa dança.
Renato Abê, jornalista e dramaturgo