A indicação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do economista, professor e escritor, Márcio Pochmann, para o comando do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), causou alvoroço no mercado.
Alguns analistas chegaram a falar de visões "polêmicas" e "heterodoxas". O cargo, ligado ao Ministério do Planejamento, de Simone Tebet, gerou desconforto com a titular, que foi pressionada a aceitar o nome indicado pelo PT.
A ministra chegou a declarar não ter sido previamente informada sobre a escolha do novo presidente do instituto.
Inclusive, a ligação que ele tem com a pasta de Tebet aconteceu no período de transição, quando participou do grupo que tratava de Planejamento, Orçamento e Gestão, o que o economista cita que foi um período de passagem do governo Bolsonaro para Lula "bastante complicado".
Mas, a escolha de Pochmann é considerada uma vitória do PT no que se refere à ocupação de cargos no governo, pois o economista é filiado ao partido desde meados de 1980.
O fato é que após as críticas, ele, em sua rede social no Twitter, mandou uma mensagem por meio de uma imagem com a frase escrita: "O professor é o inimigo - uma análise sobre a perseguição docente no Brasil".
Acima da imagem, um dia após o anúncio do novo comando do IBGE, feito na última quarta-feira, 26 de julho, pelo ministro da Secretaria de Comunicação Paulo Pimenta, Pochmann digitou em seu perfil:
Interessante abordagem de como opera a coalizão neoconservadora pic.twitter.com/TFAWaKUgP8
— Marcio Pochmann (@MarcioPochmann) July 27, 2023
Ao Super Fruits Slot, em entrevista poucos dias antes do anúncio, em 14 de julho, o professor detalha alguns de seus ideais, enfatiza que o Brasil não pensa em planejamento para o futuro, o que reforça a condição de subdesenvolvimento do País.
Ainda segundo o economista de 61 anos, a classe média brasileira está em extinção e o Brasil precisa abandonar a ideia de "Realismo Periférico", difundido pelas elites, para que tomemos a posição de líder internacional.
No que se refere ao IBGE, Pochmann avalia que o Censo revelou mudanças significativas que se mostram grandes desafios. "Temos questões muito profundas que no passado se discutia e esse debate está ausente no Brasil, hoje é muito rebaixado o nível das discussões, porque estão focados no hoje".
Mas para além do Censo, o instituto abrange ainda levantamentos que guiam políticas públicas e a destinação de verbas. Ainda é responsável pela realização de pesquisas sobre inflação (IPCA), comportamento da atividade econômica (PIB), dados do mercado de trabalho. O que pode explicar as atenções voltadas ao IBGE.
Sobrereforma tributária, Pochmann lembra da época em que o Brasil tinha alíquota de 50% de imposto de renda para os mais ricos e avalia que o texto aprovado na Câmara dos Deputados “está longe de ser uma reforma tributária completa”, que resulte em justiça social.
Super Fruits Slot - Há um ponto deficitário da vida pública brasileira que é o planejamento de longo prazo. Em muitas situações existe apenas o tratamento de emergências. Como o senhor analisa essa questão?
Márcio Pochmann - Essa questão da ausência de planejamento nos permite destacar que quando um país não consegue pensar sobre seu futuro, revela o quão subdesenvolvido ele está.
Porque o desenvolvimento é de certa forma o resultado de um planejamento de onde você quer chegar, o trajeto, com saída, meio e fim.
O fato concreto é que o Brasil vem se aprofundando no seu subdesenvolvimento, no país que está mais dependente do Exterior, porque grande parte de produtos com maior valor agregado, maior conteúdo tecnológico e geradores dos melhores empregos estão fora do País.
Apesar de o Brasil ter feito um esforço muito importante do ponto de vista de elevar a escolaridade, com elevação do número de universidades, ampliação de bolsas do Ensino Superior, quantidade de formandos em mestrado e doutorado relativamente maior ao redor do Brasil - que é muito positivo e necessário - todavia, o País não criou a estrutura ocupacional necessária e fez com que uma parte importante desses cérebros se deslocasse para fora do Brasil.
Segundo dados oficiais, nós temos cerca de 2,2% da população brasileira residindo fora do Brasil, o maior número da história do País. Justamente nós, que fomos o país que sempre recepcionou bem os estrangeiros e aproveitou bem a experiência desses imigrantes.
A realidade que nós estamos vivendo hoje eu diria que ela decorre da ausência de um projeto nacional, um projeto que tivesse convergência do ponto político chegar a um determinado local que seja superior ao que estamos hoje.
Isso passa por uma mudança de paradigma, o que se entende em relação ao papel do Brasil no mundo.
O Brasil é um território - praticamente um continente - que está entre os dez mais importantes do mundo se consideramos população, diversidade ambiental, capacidade produtiva, mas, ao mesmo tempo, não damos conta das inovações que estamos vendo no mundo.
O mundo tem hoje uma divisão internacional do trabalho que separa de um lado países que produzem bens e serviços digitais e exportam e outros países que não conseguem produzir bens e serviços digitais e por isso importam. São consumidores.
OP - Então o cenário brasileiro, neste ponto de vista, pede uma mudança de paradigma?
Pochmann - O Brasil é o quarto maior mercado consumidor de bens e serviços digitais. Pouco produz. Nós somos um grande importador.
E para poder importar esses produtos, o celular, ou o computador, enfim a parafernalha dentro da era digital, o Brasil exporta produtos primários e com as divisas que ele recebe ele paga a aquisição desses bens com maior valor agregado.
Então, o desafio nosso é mudar a forma que o Brasil está hoje posicionado na divisão internacional do trabalho, precisamos internalizar, produzir bens e serviços digitais, porque esse é o futuro pelo qual as nações estão disputando.
"A maioria política que passou a conduzir o Brasil a partir dos anos 1990 partiu do pressuposto de que o moderno não era produzido aqui. De que o que era produzido no Brasil eram carroças, como disse o presidente Fernando Collor, eram coisas atrasadas"
OP - Passamos por um período de mudança da matriz econômica brasileira do século XIX para o século XX, saindo do agrário para o industrial. Mas na chegada ao século XXI temos novamente o setor agrário tomando a dianteira do crescimento econômico. O que isso demonstra?
Pochmann - Esse é um movimento estrutural, mudou a estrutura econômica brasileira. Até o fim dos anos 1980, o Brasil era um país produtor e exportador de manufaturas. O Brasil produzia, por exemplo, computadores.
O Brasil teve a possibilidade de construir uma espécie de Vale do Silício na Região Metropolitana de Campinas. Infelizmente, tudo isso se perdeu pela forma com que nós entramos na globalização a partir de 1990, que eu entendo como uma forma passiva e subordinada.
O Brasil se abriu para o mundo sem exigências, sem os requisitos necessários, não preparou a sua estrutura produtiva, sua mão de obra, o segmento empresarial precisou conviver nesse mundo de maior exposição a competitividade e justamente por isso nós acabamos perdendo posições relativas naquilo que a gente era até uma certa forma protagonista na base industrial.
O Brasil nos anos 1980 era a 6ª principal indústria do mundo, hoje somos a 16ª. Do ponto de vista da participação do Brasil na riqueza mundial, utilizando a paridade de preços de compra (PPP), o Brasil respondeu por 4,1% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial em 1980.
Hoje responde por 1,7% do PIB mundial. Então, isso decorre justamente do reposicionamento do Brasil, que era país produtor e exportador de produtos industriais e a maioria política que passou a conduzir o Brasil a partir dos anos 1990 partiu do pressuposto de que o moderno não era produzido aqui.
De que o que era produzido no Brasil eram carroças, como disse o presidente Fernando Collor, eram coisas atrasadas.
O importante era importar, de que o moderno era importado. Isso foi nos transformando num grande importador de produtos de maior valor agregado.
Essa mudança nos fez um país que hoje é dependente do agronegócio. Isso não é ruim, mas o Brasil tem potencial de se juntar à potência agropecuária, uma potência também industrial e tecnológica.
OP - Em que ponto o senhor acredita que a situação desandou, culminando neste processo de industrialização atual?
Pochmann - O que aconteceu nos últimos 30 anos foi uma espécie de acomodação, especialmente das elites. A chamada teoria do Realismo Periférico, do 'eu não tenho condições, vamos importar, vamos nos associar a outros países, porque não temos condições'.
Nós fomos abandonando um sonho de grandes protagonistas no Brasil, como Juscelino Kubitschek.
Visionários olhando para o Brasil e como poderíamos superar as nossas mazelas a partir das potencialidades, que acreditava no brasileiro.
A impressão que eu tenho é que nós fomos perdendo isso. Nos acomodando a uma condição que está muito longe daquele potencial que nós podemos de fato vir a executar.
"O Brasil sempre foi visto como o país do futuro. O futuro aparentemente foi cancelado"
OP - Em relação ao pensamento da macroeconomia brasileira nos últimos anos, tivemos uma saída conturbada do PT do poder, passagem de Michel Temer e o ganho de força de um pensamento neoliberal. O que a volta do PT ao poder significa neste contexto?
Pochmann - Entendo que ainda há no Brasil uma espécie de mentalidade neocolonial, que é acreditar que aquilo que vem de fora é melhor do que é produzido internamente.
Não é uma posição xenofóbica, de que nós não aceitamos o que vem de fora, mas é, por outro lado, reconhecer que a Europa e os Estados Unidos não têm muito mais o que nos ensinar. Até porque há um deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente.
O Oceano Atlântico, que é o principal protagonista das relações comerciais entre os principais países, se desloca hoje para o Oceano Pacífico.
O Brasil, por exemplo, não tem saída para o Pacífico. Isso significa que, na realidade, há a necessidade do Brasil ter uma integração muito mais forte com os países sulamericanos, eles têm saída para o Pacífico, por exemplo.
"O IBGE revelou através do Censo mudanças significativas no Brasil. No século XX, a população brasileira foi modificada 10 vezes. No século XXI, possivelmente não teremos crescimento da população"
A questão da integração regional parece como algo que não está dentro dos paradigmas regionais. Quando se pensou o Brasil, pensou de forma isolada, uma nação em si.
Mas, obviamente, nós sabemos hoje com a mudança geopolítica ocorrendo que o Brasil pode liderar um centro de desenvolvimento regional unindo-se com os países sulamericanos.
Isso não é apenas uma questão técnica, mas também política, de como você constrói essa perspectiva no mundo muito polarizado, em guerra, com sérias ameaças, inclusive à própria democracia.
O desafio do dinheiro assim é oferecer uma visão de futuro, que de certa maneira conecte as pessoas, de que amanhã pode ser melhor do que hoje. O Brasil sempre foi visto como o país do futuro. O futuro aparentemente foi cancelado.
Então você está pensando sobre o que seria o Brasil daqui a 10 anos, daqui a 20 anos, até porque há alterações substanciais da população brasileira.
O IBGE revelou através do Censo mudanças significativas no Brasil. No século XX, a população brasileira foi modificada 10 vezes.
No século XXI, possivelmente não teremos crescimento da população. Isso é outra realidade. O Brasil hoje é um dos países que mais fecha escolas porque a pressão de crianças no Ensino Fundamental caiu muito.
A taxa de fecundidade das mulheres é de 1,6 filhos por mulher hoje, sendo que deveria ser de 2,1 filhos por mulher se quiséssemos pelo menos manter a população.
Então temos questões muito profundas que no passado se discutia e esse debate está ausente no Brasil, hoje é muito rebaixado o nível das discussões, porque estão focados no hoje.
OP - Teremos uma mudança importante na geopolítica internacional com a China tomando a liderança da economia dos Estados Unidos. E também já se projeta que a Índia superará os americanos... Como o senhor avalia que esse movimento deva impactar o Brasil e suas estratégias comerciais e políticas?
Pochmann - Esse tema é muito interessante. Parto da hipótese de que estamos diante do colapso do projeto de modernidade ocidencial, que se iniciou a partir de 1453 quando houve a queda de Constantinopla - hoje Istambul -, tomada pelos turcos, que passou a impedir o fluxo comercial das antigas rotas da seda, que era o deslocamento comercial do que havia de mais avançado que estava nos impérios hindus e do Império do Meio, - hoje a China.
Então a Europa era muito primitiva, empobrecida e dependente do comércio. A interrupção desse comércio em função da queda de Constantinopla fez com que os comerciantes ricos de algumas cidades-estados, como Veneza, na Itália, juntassem os seus recursos com o império português e Império espanhol - que tinha alguma experiência de navegação.
A partir daí se desenvolveu uma tecnologia para navegação para tentar chegar às Índias, não mais indo pelo oceano Mediterrâneo, mas avançando pelo Oceano Atlântico.
A partir disso, eles chegaram no continente americano, com Américo Vespúcio. Aí se constrói um projeto de modernidade, pois a Europa ainda era atrasada - naquela altura da história a modernidade estava na China e na Índia.
Até o século XVIII, ao juntar a economia das duas potências orientais, tínhamos bem mais do que a Europa. Mas as grandes navegações permitiram juntar o continente africano, americano e a Europa.
Você une a exploração do trabalho escravo de africanos para tirar ouro, prata ou em esquemas de plantation, como vimos no Brasil em grande escala no açúcar, e essas mercadorias vão para Europa.
Ao ir para a Europa isso vai gerar uma acumulação, que vai resultar no capitalismo, na Revolução Industrial.
O mercado mundial tem como centro do mundo a Europa, a Inglaterra, um eurocentrismo. Posteriormente, o que que vamos ter, a partir das duas grandes guerras, o deslocamento "Centro do Mundo" da antiga Inglaterra para os Estados Unidos.
A base desse projeto de modernidade, os iluministas do renascimento, toda a ideia da filosofia a partir da Grécia Antiga, é uma construção em torno desse projeto de modernidade ocidental porque esse projeto desconheceu tudo que havia antes.
Por exemplo, você sabe o que que era o Brasil antes de 1500? Quem estava aqui? Quem são as pessoas?
Nós não estudamos isso. Mas a gente sabe que tinha Platão, Aristóteles e a ideia de história universal. Antes disso tínhamos os filósofos chineses, indianos, mas ninguém estuda isso porque tinha um projeto modernista e esse projeto de modernidade ocidental está sentado em dois eixos que esgotam esse projeto hoje: O primeiro a guerra.
A outra é o uso indiscriminado da natureza. Esse projeto está limitado, sem saída. Então, penso que os chineses estão inventando alguma coisa, eu nem sei se vai dar certo, mas é um outro projeto.
Digo isso porque no Brasil nós fomos "inventados" pela ideia de que o nosso futuro estava na Europa, o nosso futuro nos Estados Unidos e esse norte global, não tem muito mais o que dizer, por isso que é crescente a efervescência no Brasil, mas sobre o chamado sul global.
OP - O Brasil poderá ser beneficiado com esse movimento?
Pochmann - Os Brics "Organização de países de mercado emergente formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul" vão se reunir em agosto para talvez se abrir para a entrada de mais países. Então o centro do mundo está se deslocando para essa possibilidade e o Brasil está no meio. Isso é uma coisa nova pela qual pouco se discute no Brasil.
OP - Olhando para a sua formação na universidade, o senhor imaginava que seria um influenciador na política e economia a partir das suas dezenas de publicações?
Pochmann - Eu acredito nas ideias. Embora eu saiba que as ideias não são capazes de mudar a realidade. Mas eu entendo que quem muda a realidade são as pessoas, são as ações coletivas, sindicatos, partidos, porque as coisas não mudam espontaneamente.
A mudança é feita pelo homem. Eu acredito na humanidade como capaz de mudar e a história inclusive mostra isso. Mas para mudar a realidade, você precisa de ideias.
Eu sou professor, sou pesquisador e o meu papel é justamente atuar nesse campo das ideias, do entendimento, da pesquisa.
Penso que esse é um instrumento importante, meu papel é difundir essas ideias, abrir diálogos, conexões. Obviamente, não sou dono da verdade, pelo contrário, a partir da controvérsia, que nos permitiu avançar.
Você me coloca essa dimensão de direita, de esquerda... A minha primeira experiência profissional de trabalho foi como um operário de uma fábrica de fumo na minha cidade, Venâncio Aires (RS), aí eu comecei a trabalhar e fui aprendendo que tem diferenças na sociedade e que é da realidade.
Eu estou apenas escrevendo, não é um julgamento de valores. Tem gente que é proprietário e tem gente que não é. Eu acredito que para melhorar a sociedade, é necessário que aqueles que não têm as propriedades, não têm poder e que dependem do seu trabalho precisam estar melhor organizados.
É uma luta em torno de uma busca de um projeto de igualdade na sociedade. Se sou visto mais à esquerda, perfeito, porque a ideia de esquerda e direita é também uma invenção que vem da Revolução Francesa de 1789.
Eles identificaram essa ideia: o pessoal que ficava à esquerda do rei era o pessoal que defendia, digamos assim os camponeses, o pessoal que não tinha muita coisa na vida, enquanto o pessoal que tava à direita defendia os proprietários de terra.
Então eu me alio mais a essa perspectiva, daqueles que não têm outra possibilidade de viver que não seja a partir do seu próprio trabalho.
O que não quer dizer que os empresários, proprietários, os capitalistas também não tenham um trabalho, uma vocação. E, aliás, o sistema capitalista pressupõe a existência de empresários e essa nossa realidade.
"Eestou convencido do contrário, de que o Brasil vive o desaparecimento da classe média."
OP - Tivemos um grande fortalecimento da classe média desde o fim dos anos 1990. No entanto, a partir da crise econômica da última década, esse grupo da população teve a renda deprimida...
Pochmann - Eu não acredito que houve crescimento da classe média, tenho dois livros escritos sobre isso e teve um debate nos anos 2000, anos 2010, sobre a nova classe média.
Me debrucei sobre esse tema e estou convencido do contrário, de que o Brasil vive o desaparecimento da classe média.
Esse grupo, de classe média, são empregos, renda e ocupação intermediários. Temos a cúpula de mais alta renda e tem a base. E essas preocupações e rendas intermediárias estão vinculadas à estrutura produtiva.
Então, o saldo da classe média assalariada no Brasil é dos anos 1970 e 1980, mas pouco porque justamente quando o Brasil completou a industrialização, tivemos muitos empregos que são da burocracia privada.
Numa grande empresa automobilística, por exemplo, temos o pessoal da fábrica, que vai lá montar um automóvel, tem a direção da empresa e tem gestores, os administradores.
São postos de trabalho que não põem a mão na graxa, estão de colarinho branco, mas eles não são os donos da empresa, são intermediários.
A expansão das grandes empresas privadas e estatais gerou muitos empregos intermediários.
O que aconteceu no Brasil a partir dos anos 1990 foi o encolhimento desses empregos intermediários, uma parte, inclusive, por força da terceirização, por força do enxugamento, por força da desindustrialização, os empregos de classe média foram se enxugando.
Houve alguma compensação pelo emprego da administração pública, com os médicos entrando no Sistema Único de Saúde (SUS), professores na educação pública, mas não compensou.
Os que cresceram foram esses pontos de trabalho que pagam em torno de 1 a 1,5 salário mínimo porque expandiu o emprego no Brasil dos anos 2000 para cá, mas isso não identifica-se na verdade como alguém de classe média.
As pessoas passaram a comprar mais, agora tem celular, melhorou a casa, tem geladeira... Tudo bem, mas nos anos de 1940 de cada dez operários franceses, apenas um tinha automóvel. Na década de 1970, subiu para nove a cada dez.
OP - No Brasil, a propaganda petista exclamava justamente o ganho em poder de consumo...
Pochmann - Esses produtos foram incorporados ao padrão de consumo, mas os trabalhadores continuaram operários. Neste sentido, infelizmente o Brasil, pela desindustrialização, vem na verdade encolhendo muito o que era um país de classe média.
E talvez essa polarização que nós vivemos hoje na política revela justamente o esvaziamento desse segmento intermediário.
Esse é um segmento um pouco mais letrado, tem uma visão do mundo diferente que não é a da emergência de quem tá correndo com uma condição muito pequena e muito menos de maneira descolada correndo lá em cima.
OP - A partir da sua mais recente publicação, "O Sindicato tem Futuro", como o senhor analisa o futuro do trabalho, das relações trabalhistas e qual o papel dos sindicatos num contexto pós-reforma trabalhista?
Pochmann - A visão que vem dos proprietários, dos capitalistas, suas instituições e dos seus porta-vozes é uma visão praticamente de cancelamento no futuro do trabalho. Porque, recorrentemente, há estudos dizendo que vão desaparecer não sei quantos empregos, que as mudanças tecnológicas estão encerrando empregos.
Com esses discursos de que o trabalho no futuro vai ser pior do que o presente, nem vou discutir para melhorar, vou tentar sobreviver hoje. Eu penso que isso é uma estratégia ideológica para esvaziar o potencial de tensão e conflito e os sindicatos ou partidos políticos de esquerda poderiam fazer desmentir, dizer que não é verdade, que o trabalho está desaparecendo.
Não é que o emprego está desaparecendo em função da nova tecnologia, está mudando a natureza do trabalho.
Em 2019, segundo a Federação Internacional de Robótica, que é uma instituição que acompanha a difusão de robôs no mundo, uso de inteligência artificial (IA) e tudo que está vinculado a essa revolução informacional que estamos vivendo, os países mais avançados no uso de IA e robótica - estamos falando de Cingapura, Taiwan, Coreia do Sul, Alemanha, Estados Unidos e China -, esses países não tinham problema de desemprego.
A taxa era de 3%, 4% do total da força de trabalho. Não é que não existam problemas de mercado de trabalho, ter um salário baixo, ter precarização, mas não tem problema de desemprego estrutural tecnológico.
Os países que mais investem em tecnologia são os países que têm menos problemas de desemprego. E quais são os países que têm problemas de emprego? O Brasil, com taxas de desemprego de 8%, 9%, 10%. País que não investe em tecnologia.
O ramo financeiro é o setor que mais faz investimento tecnológico. E foi neste setor onde o Brasil mais cresceu em empregos. Mas como?
Veja: Em 1988, o Brasil tinha 1 milhão de postos de trabalho diretamente envolvidos no ramo financeiro, sendo que deste 1 milhão de postos de trabalho no ramo financeiro, 850 mil eram contratados diretamente no banco, os bancários tradicionais, gerentes e escriturários.
E tinham outros 150 mil trabalhadores que prestavam serviço com bancos, eram os seguranças patrimoniais e de transporte de valores. O que nós temos hoje no sistema financeiro são cerca de 1,6 milhão de trabalhadores.
Só que o trabalhador diretamente contratado pelo banco representa menos de 400 mil dos contratados. Mas existem 1,2 milhão de trabalhadores no ramo financeiro que são correspondentes bancários, consultores de bancos.
Não é que desapareceu, mas mudou a natureza, não é mais aquele emprego tradicional. Existia o taxista, agora temos o motorista do Uber. A ocupação continuou, mas mudou a natureza.
O que quero chamar atenção é que de maneira geral estamos convencidos de que o emprego vai desaparecer e se vai desaparecer, as pessoas não reclamam dos salários, das condições e acabam aceitando qualquer coisa.
OP - Com base em sua experiência acadêmica e de gestão, como avalia a gestão da economia brasileira a partir do trabalho de Paulo Guedes como ministro?
Pochmann - Paulo Guedes era um banqueiro, então eu diria que se formos avaliar o propósito da gestão dele e o resultado alcançado, para mim, é um fracasso.
Vou dizer, como testemunho, que participei da transição que ocorreu do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso para o governo presidente Lula, no fim de 2002.
E participei agora, no grupo que tratava de Planejamento, Orçamento e Gestão e foi uma transição bastante complicada.
A reforma administrativa que foi feita, cuja a ideia era de reduzir o número de ministérios, encolher para ser mais eficiente etc, demonstrou, na verdade, um certo insucesso, pois afastou a administração pública da sociedade, das pressões, houve a dificuldade de acesso a informações precisas até para planejar o próximo governo.
Os servidores públicos ficaram desmotivados, então eu penso que reduziram a produtividade da administração pública por conta da forma que foi encaminhado.
Sem falar da destruição de políticas públicas. O ex-ministro Adolfo Sachsida falou que a proposta deles era a privatização, inclusive da Petrobras.
Realmente, foram privatizadas algumas empresas, mas qual o resultado econômico? O resultado não apareceu. Talvez por esse fato o presidente Bolsonaro não conseguiu se reeleger. A população certamente avalia e o que penso é que eles não conseguiram apresentar resultados diante das promessas que foram feitas.
OP - O Brasil discute a reforma tributária neste ano e o senhor se mostra um crítico do atual modelo. Considera a atual proposta positiva?
Pochmann - Nós tivemos uma reforma tributária no início dos anos 1990, que aliviou impostos, taxas e contribuições para as rendas mais altas do Brasil. Para os ricos.
Por exemplo, no fim do governo Sarney, a alíquota máxima do Imposto de Renda chegava a 50% e ela caiu para 25% e hoje é 27,5%, então, obviamente, os que ganham mais passaram a pagar menos imposto.
Até 1994, dividendos e resultados de lucros pagavam uma taxa de 15% e, de lá para cá, ficaram isentos. Quem ganha com lucros e dividendos? Os ricos.
Já o trabalhador que recebe a Participação nos Lucros e Resultados paga Imposto de Renda. E mais, até 1995, as exportações de produtos primários pagavam impostos.
Então houve reformas aliviando o andar de cima e, obviamente, aumentou a carga tributária de 24% do PIB para 32% do PIB.
Então, a ação que está sendo feita, ela tá longe, digamos assim, de ser uma reforma tributária completa se a gente entender uma reforma tributária completa como aquela cujo foco é justiça do tributária.
Márcio Pochmann formou-se em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e é doutor pela Universidade de Campinas (Unicamp), onde também leciona. Já concorreu à prefeitura da cidade do interior paulista em 2012 e 2016, mas não conseguiu se eleger.
Pochmann lançou recentemente mais uma publicação: "O sindicato tem futuro?". O autor esteve em Fortaleza para o lançamento, neste mês de julho. Nos textos, uma visão sobre o mundo do trabalho e organização sindical.
O economista é reconhecidamente uma das inteligências da área econômica para o petismo. Próximo a Lula, Pochmann já foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2007 e 2012; presidente da Fundação Perseu Abramo de 2012 a 2020; bem como secretário municipal de São Paulo de 2001 a 2004.